Mané Fernandes
Enter the sQUIGG
CD Clean Feed 2022

«Modernity is a bitch», escrevia um crítico de arte. Creio que o crítico, na utilização exuberada e provocadora que os americanos atribuem à obscenidade, se referia ao ardil equívoco de uma modernidade almejada, mas amiúde ignorante e púbere. É também comum ver modernidade associada a novidade ou mesmo vanguarda, e decorre da necessidade de marcar a diferença nesse meio artístico. E infelizmente diria que para muitos modernaços, essa modernidade não passa do boné de pala para o lado.
Vem o proémio a propósito do disco de estreia de Mané Fernandes, pelas razões opostas: «Enter the sQUIGG» é um disco de uma modernidade irredutível, mas ele surge de certa forma contra-a-corrente do beco da «improvisação livre» na moda no panorama nacional.
A partir de melopeias que se diriam por vezes infantis, cinco ou seis notas apenas, ou pedaços de quotidiano, Mané Fernandes investiu nos arranjos muito para além do que à superfície se pode divisar (ou, como sabemos, a arte de contar histórias reside na forma como são contadas). Fragmentos, elementos dispersos – jazz, pop, hip-hop, folk, electrónica, música contemporânea - dissecados e assemblados numa forma que diríamos de montagem cinematográfica, onde cabe a improvisação, quase sempre protagonizada pela guitarra ou pelo saxofone de José Soares. Há algo de Miles: os sons parasitas de Bitches Brew-, e uma construção que raramente eleva a voz, os tempos contidos de um (falso) chill-out, cantilenas que desconcertam e se repetem ou se transformam num meticuloso processo minimalista.
O centro do Enter the sQUIGG é constituído pela guitarra, o baixo e a bateria; e a secção rítmica é mesmo o nervo do disco (mas ela pode prolongar-se insuspeitada pelo saxofone ou o acordeão). Uma espécie de inquietude na intrigante acentuação que tanto pode segurar os improvisadores como interrogá-los em acentuações nos tempos errados, dissolver-se, ou precipitar-se, como que destrambelhada.
Tudo é meticuloso, tudo é rigoroso, sem excessos, sem alardes virtuosísticos, e tudo parece simples no disco de Mané Fernandes. Nada de mais erróneo: Enter the sQUIGG são 45 minutos de música engenhosamente construída, moderna, subtil e saborosa, e foi para estes ouvidos O Disco do Ano de 2022.

Mané Fernandes (c, g, b-el, p, voz)
Luca Curcio (ctb, mandolin)
Simon Albertsen (bat)
José Soares (sa)
José Diogo Martins (p, sint)
João Barradas (aco sint)
Flavia Huarachi (f)

(Este texto foi publicado no Jornal de Letras)